Ambientes de Trabalho de Nuno Ramalho

Esta exposição dá continuidade a uma série de trabalhos enquadrados por uma mesma temática, que tenho vindo a abordar desde o início do meu percurso.

Procuro, de forma mais ou menos visível mas constante, reflectir sobre arte: da criação artística em si, com os seus problemas e conflitos, ao sistema artístico e aos diversos agentes que nele operam, das relações entre estes (por exemplo, artista – galerista) aos espaços expositivos e aos decisores que aí se inscrevem, das formas da crítica às do mercado da arte, da economia na sua articulação com a criação de objectos/mercadoria artística ao papel do artista e à sua possível caracterização filtrada através de todos estes elementos – desde o retrato-robot ao criador-terrorista enquanto formas simultaneamente idealizadas e ameaçadoras, à morte ou estrangulação do artista pela acção ou inacção dos agentes artísticos, ou através da fragilidade, contingências e vicissitudes do sistema das artes. Todas estas reflexões encontram no desenho e nas intersecções deste com a colagem, o mural, a assemblagem, a apropriação, a instalação e o desenho expandido a forma mais sintética de as dizer, de as expor. Um dizer / expor que procura convocar, envolver e implicar o observador.

Com meios diversos sobre diferentes suportes, de modo convencional ou menos tradicional, o desenho – a cosa mentale fundamental – é a ferramenta que comenta o reflectido, aqui tomando conta das paredes e do chão, inscrevendo alguns traços da realidade observada ou revelando espectros desta na projecção de vídeo, instalações e demais obras apresentadas.

A noção de escala permite minimizar, humanizar ou monumentalizar de forma crítica a representação da realidade económica, histórica e cultural. Do mesmo modo, o desenho de luz permite clarificar ou sublimar as características dos materiais, potenciando imagens metafóricas, obras abertas a múltiplas e complexas interpretações.

O atelier, espaço de produção mas sobretudo de reflexão e concepção, abre a exposição. Aparece em ‘ambientes de trabalho’ inscrito no desenho/ilustração-colagem da entrada, representação tridimensional realizada a partir do registo fotográfico da porta do atelier, situado exactamente no centro do Porto (com tudo o que isso implica nos dias de hoje). O trabalho prolonga a porta do próprio espaço expositivo, dando continuidade ao ciclo da obra de arte ao mostrar mais uma fase da sua produção e circulação: a da apresentação e o consequente confronto com o público.

A padronização do processo de criação, apresentação e aquisição de qualquer obra de arte e a relação destas com qualquer outra mercadoria é, de algum modo, reflectida pelos desenhos com pontos, linhas e módulos ritmados de forma regular ou orgânica, inscritos com moedas de um cêntimo, (moedas cujo valor de produção é maior que o valor da moeda), num material plástico específico para a embalagem, nomeadamente de mercadorias artísticas.

As obras, com poder potencialmente simbólico, singular e distintivo, encontram-se no chão; são parte da nossa realidade, estão em exposição e predispostas para o transporte, para a suposta última fase do ciclo: a fase da aquisição, a fase de integração no mercado. A padronização que emerge aos nossos pés com o peso da moeda sobre um material frágil, leve e transparente, é precedida por uma linha recta. Esta, de certa forma, também define um limite – o limite do material, que então dá lugar ao padrão e aos seu diversos níveis de complexidade para, em seguida, emergirem imagens constituídas por pontos arrastados, que introduzem determinada ideia de espaço e de desmaterialização.

O padrão ou o processo de padronização, que parecem tomar conta de todo o espaço, vão paradoxalmente instaurando o caos observável na acumulação e sobreposição de moedas, na composição aleatória e de pontos que nos restituem a imagem de espaço sem fim, inúmero.

A um canto, invisível desde a entrada e de difícil visionamento, dois desenhos reproduzem mimeticamente uma imagem fotográfica, apropriada da web e originalmente mal impressa sobre papel. Em cada uma dessas imagens originais é apresentado o mesmo personagem, com a mesma expressão facial (note-se o vídeo e retorne-se a estas obras), a mesma pose, a mesma situação, dissemelhante apenas numa das peças de roupa (a t-shirt na primeira e a camisola na segunda).

A peça de roupa, mercadoria, não é aqui o diverso mas sim o singular. O duplicado é o sujeito, o homem-módulo na sua existência, redesenhado enquanto homem-objecto, menos indivíduo, mais uma coisa no seio de uma ecologia maior e de elementos igualmente pertinentes, talvez afastado da sua individualidade enquanto ser mas eventualmente próximo de outras possibilidades.

Não tanto por oposição mas por dissonância, ao lado destas duas reproduções e visíveis de quase todos os pontos do espaço expositivo, menos de um, aparecem a reprodução da almofada utilizada por mim no atelier para descansar (ou preguiçar, ou não-trabalhar, ou adiar), e os estudos e variações imaginados a partir do padrão desta, até ao do espaço da sua própria produção. Estes esquissos evidenciam o quanto a almofada se torna singular, objecto eleito para determinado uso e assim mesmo revelar ‘em negativo’ aquilo que se lhe opõe: uma constante pressão para o trabalho, para a ideologia que o alimenta e dele se sustenta (aqui, pense-se no vídeo apresentado e no que ele sugere), para a qual a arte e os artistas contribuem mais do que efectivamente interrompem. A almofada é também um múltiplo, tornado singular pelas marcas humanas, tempo investido e presença constante.

É o tempo, o investimento, a dedicação, a obsessão e a presença que tornam particular, singular e humanizado o tapete de moedas com padrão e textura regular realizado manualmente. Esta obra, que evoca novamente outras formas do trabalho sem as explicitar, procura evidenciar a humanização da criação, e por outro lado a incapacidade de padronização no gesto criativo quando criado em determinadas condições, segundo determinados ideais, razões e ou objectivos.

Este tapete constitui um chão matérico, pesado, mas igualmente sublimado; uma representação e um ideal. O trabalho convoca a obra “Golden Field” (que por sua vez dará origem a “Gold MatsPaired – For Ross and Felix”), da artista norte-americana Roni Horn. Esse projecto consiste numa ‘folha’ em ouro com as mesmas dimensões do tapete aqui preparado. Nesta que é a última obra da exposição, não resisti à necessidade de citação, talvez por me permitir uma outra maneira de entender o material que mais tenho utilizado ultimamente – moedas de um cêntimo, denominadores mínimos de uma elasticidade material e imaterial complexa. É um trabalho que reclama o espaço expositivo enquanto atelier e local de experimentação, devolvendo o visitante à peça da entrada e ao loop que ‘ambientes de trabalho’, essencialmente, materializa.

 

Texto editado a partir de uma conversa maior entre o artista e o curador José Maia

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