Edi!fiquei a minha cabana no meio dos homens
Uma página para Soltar a Cadeira de Mauro Cerqueira
Ainda aqui estamos, é tudo o que as criações de Mauro Cerqueira continuam a dizer. É o que me apetece escrever sobre este mundo e sobre estes lugares, até porque no limite as obras de Cerqueira assim como a matéria fervente de todos os artistas, poetas e filósofos são tudo aquilo que nos permitem apetecer escrever e rever do mundo.
A cidade do Porto que cedo o artista narrou não se tornou capa de fundo de uma vontade documental. O Porto é a deriva de um lugar pensante para alcançar qualquer outro. Afinal ainda aqui estamos e o Porto são todos os outros lugares que se desenvolvem sobre esta égide de cidade, aqui como em qualquer outro lugar. A rua dos Caldeireiros, como a ribeira da Faina Fluvial de Manoel de Oliveira. Partir do Porto para olhar o mundo, partir da ficção sobre os sulcos do real para só aí o podermos alcançar em pleno.
Sem qualquer tipo de conivência aquilo que vemos agora, aqui sentados e diante deste filme, é de novo o corpo do artista, agora com a mão numa câmara a gravar-nos, nós e todos os que habitam a cidade nos sulcos das suas margens, aqueles que suturam e que cozem os desvios da ordem e do processo. (lembro de novo a mão de Duras e as ruas de Paris).
Dos lugares de desvio e controle às vezes esquecemo-nos das ruas
O final, uma sequência cinematográfica montada numa assemblagem do mesmo modo como aglomera e monta uma imagem, quadro, escultura ou instalação.
A mesma explosão e implosão das matérias do mundo.
E a obra de Mauro Cerqueira tem cimentado a certeza de que tudo é o mesmo, não existem grandes distâncias nos gestos, estamos sempre num mesmo vórtice, as assemblages, as aglomerações de objetos, o desenho gravado, pintado ou rasurado, as projeções, os vídeos e as performances, o artista a saltar sobre as obras, as obras a implodirem, afinal o espaço da criação vive do mesmo gesto e mostra o mesmo. No filme parece surgir mais presente e direto, porém, toda a obra sempre foi isso, sempre foi a cidade, a invasão do real, as explosões petrificadas, a revelação do presente, a projeção das várias cadências e decadências, as vertigens dos homens, o ócio, (…) a velocidade como que as imagens correm é que são de tempos diferentes, aparentemente.
Se olharmos de frente para a conversa que Soltar a Cadeia nos permite, não se trata de um trazer à tona, de um mostrar um lugar escondido, de ser dominado pelo submundo de uma cidade, trata-se de uma visão clara daquilo que são os movi – mentos e os corpos de um tempo e de um lugar e o que eles ainda nos dizem sobre o mundo.
Os poetas desde o início dos tempos são aqueles que melhor narram o mundo, nas palavras as imagens existem e correm com a mesma velocidade que no filme. Ainda aqui estamos e ao ver o filme de Mauro Cerqueira copio as palavras transcritas do mandarim antigo para o português moderno, pelas tramas da língua e aquilo que se possa ter perdido, uma parte de um poema de Tao Yuanming um dos antigos poetas da China ou dos inícios das civilizações orientais.
Ainda que sórdido podemos ouvir este poema ao olharmos estas imagens.
João Terras
Bebendo vinho
Edifiquei a minha cabana
no meio dos homens
porém não se ouve o clamor
de carroças ou cavalos
e tu perguntas-me,
Como é que é possível ?
Quando o coração se ausenta,
até os lugares se afastam também.
(…)
Alguém se apercebeu de que falta alguém ? T
ao Yuanming (Tradução Manuel Afonso Costa, Assírio & Alvim)