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Espaço Mira

“$em ver” de Celeste Cerqueira por João Terras

Uma das astúcias das cidades reside em fazer-nos crer que elas são eternas. Querem que pensemos que elas são o fim das ci-
vilizações naturais, que as explicam. O que existe de verdadeiramente rompante nesta frase de J.M.G. Le Clézio em o Índio Branco, é o desvínculo absoluto na descrença de um saber humano. Verdadeiramente rompante por colocar o Homem como pronome da cidade.
Basta de fechaduras!
Muito provavelmente, mesmo que no centro da Amazónia, Clezio também escreveu este texto numa cidade e no carro se orientou para o café. O peso da arte, a linguagem a comer-se a ela própria. O que verdadeiramente nos rompe neste seu pensamento é a tentativa, mesmo que forçada, de se desvincular de um humano absoluto, detentor, sabedor, alto, de um humano-pássaro, não por voar mas pelo olhar picado. Homem-Satélite.
Foram as palavras de Clezio as primeiras que surgiram, poderiam ter sido outras, poderiam não ter sido nenhuma, afinal, diante desta nova presença de Celeste Cerqueira no Espaço MIRA (depois de 2015 e 2016), estamos num declive profundo da linguagem enquanto elemento de prova. Estes desenhos, pinturas, formas e corpos, antes de serem a imagem de onde partem são de uma absoluta libertação. Talvez seja esse o anúncio que encontramos no fazer artístico de Celeste Cerqueira, não pela absoluta certeza da sua direcção mas porque é mais necessária a libertação do fazer do que o suporte ou a forma que possamos gerar, é mais urgente e necessário esse lugar desvinculado para podermos olhar o mundo, perceber como habitá-lo, como o somos habitando-o. E a criação e suas matérias surgem nessa fenda.
Nesta nova exposição a instalação viraliza-se pelo espaço da galeria sustentando-se em dois polos, ambos opostos ao peso da arquitetura do lugar, chão e ar.
Ao mesmo tempo que são cor, são a sua ausência, são papel e transparência, forma e plano. Os objetos suspensos, tal como o corpo e o território, deformam a imagem de desenhos a grafite de arquiteturas de poder, europeias, profetizando a profunda insustentabilidade dos seus alicerces. Arquitetura passa a ser corpo, passa a ser da mão, passa a mover-se.
No chão, os movimentos de ondas, a imagem do real interestelar, além da escala do humano, imagem de supervisão, são as primeiras palavras que surgem. A cor destes desenhos, algures entre a escala do digital e a forma aquosa da tinta, recuperam-nos o mesmo sentimento quando os primeiros satélites foram além da nossa altura: alcançar um conhecimento do desconhecido repintado esse outro lugar a uma nova escala já não humana.
E nessa escala de forças, os desenhos de Celeste Cerqueira são, ainda, as nuvens, castelos suspensos, as cores, o chão e o rio. Que tempo este de ainda valer a apofenia.

Tudo recusa o outro. Não há tempo para o homem. O Desenho do mundo é sempre medonho. E porque o real é absoluto, no após destas imagens, aprovem-me dizer que tudo o que é daninho ou daninha, o que se deixa de ver, o que nos desnivela, nos rompe, o que é matéria do sopro e do ar, de falas do escuro, tudo aquilo que não conseguimos pesar, que cobrimos com o sagrado, acabará por amedrontar o controlo e o poder. Se tivermos tempo livre um dia as casas serão dança, a economia o cantar, o cimento a pedra, as cidades o mar.
*Todas as citações são da obra Índio Branco (1989) de J.M.G. Le Clézio publicado em Portugal com tradução de Júlio Henriques pela Fenda edições.

João Terras, Junho 2021