Quem tem medo de exposições, ou a arte de confrontar as nossas próprias expectativas
Qual é a lógica, a necessidade ou o desejo que provoca mais e mais artistas a trabalhar fora dos limites da sua própria disciplina, definida pela noção de reflexibilidade livre e pura estética, encarnada pelo circuito galeria revista-museu-coleção, e assombrada pela memória dos géneros normativos, pintura e escultura? (Holmes, 2007)
Esta provocação de Brian Holmes é no meu entender, uma das maiores inquietações dos artistas nos séculos XX e XXI. A questão não procura uma resposta, nem Holmes a está a desvalorizar, talvez esteja a apenas a apontar a problemática ao tentar compreender o que têm em comum tantos artistas de tantas diferentes áreas/práticas, geografias e materialidades.
A obra e prática artística de Sérgio Leitão deambula entre as potencialidades da linguagem visual – a espacialização da palavra – da pintura e da escultura, mas também entre uma certa obsessão pelo fazer (e como fazer), e os despojos disso, ou seja, pelos materiais de criação. Desde o objeto livro que serve de referência literária e conceptual, aos materiais de revelação fotográfica ou de serigrafia, todos os objetos que servem de suporte ao processo artístico podem acabar por tornar-se parte dele. De tal modo que, em alguns casos – e aqui estou a pensar na instalação que esteve na Bienal da Maia 2021, entre setembro e outubro deste ano – o material que serve de suporte para a criação das obras é na verdade um excedente de outras produzidas previamente.
Na exposição ZumZum no Espaço Mira, um texto com três versões em folhas manuscritas de uma apresentação do artista na República Checa parece servir como guião ou como ponto de partida para um discurso expositivo. Numa tentativa de falar em checo, uma língua que desconhecia, leu em português um texto polifónico, usando uma entoação que os checos entendiam. Num exercício de partilha sonora, “LINGVISTA / THE LINGUIST” (2021), em que o que era mais importante para Leitão não era a mensagem transmitida, mas sim a possibilidade real de se fazer entender, fazia com que, por outro lado, ele próprio não percebesse o que estava a dizer. Com esta ação que se tornou na realidade numa performance, Leitão conseguiu revelar a potência e força da linguagem no seu corpo de trabalho, ao mesmo tempo que saiu da sua zona de conforto.
No contexto dessa saída da sua zona de conforto, Sérgio Leitão lida de duas formas possíveis: a primeira é deixar-se entusiasmar, extasiar-se com o novo, o diferente; a segunda é usar a referência do Jaques Rancière para introduzir aqui um mestre ignorante.
Compreender algo com a ajuda de um professor, ou de um sistema de escolarização é algo pelo qual todos passamos (ou passámos) em algum momento da nossa vida: afirmando que fazer uma interpretação através de um conjunto de ferramentas aprendidas à priori condiciona a experiência. Isto é factual, e algo que dificilmente conseguimos mudar, a não ser que tenhamos decidido sair do sistema educativo (algo que a corrente lei não permite).
Esta exposição de Sérgio Leitão funciona como uma proposta de criar mudança nos sistemas de leitura, interpretação e compreensão individuais e coletivos: a partir de um exercício de interpretação, criar extrapolações para esta exposição, ou para todas as exposições alguma vez concebidas.
Num extremo, ela pergunta-nos: o que é uma exposição, o que é uma obra de arte contemporânea, o que é um público? Além de serem questões que me assombram desde que eu própria passei por um processo de formação artística em Belas Artes há cerca de 20 anos, elas não desaparecem do ambiente deste texto, e ficam entranhadas em todos os que a visitam. Na verdade, são coisas partilhadas pela maioria de nós, ainda que não seja algo consciente: como nos devemos comportar numa exposição, podemos fazer barulho, tocar nos objetos?
De que forma nos relacionamos com um objeto expositivo? O que deve ser esperado do público: que se compadeça do que vê, se emocione e relacione, ou que se distancie de sentimentos enquanto interpreta conceptualmente os objetos (mesmo que não consiga perceber porque são obras de arte).
Os vídeos de Sérgio Leitão presentes em ZumZum apontam ampliações de outras obras, as imagens pixelizadas das capas dos livros são apresentadas com movimentos de zoom in/out, onde diferentes variações cromáticas apontam texturas, sensações térmicas, impressões sonoras, ao mesmo tempo que fazem uma viagem pela história das imagens: imagens que não são as iconografias que estamos à espera, mas sim ampliações máximas delas, evocando um minimalismo visual que muito interessa ao artista.
O potencial criativo de uma imagem raramente chega a ser alcançado na arte contemporânea porque é facilmente abandonado ou substituído por algo novo. No caso de Leitão, a imagem pode resistir, regressar ou transformar-se, assim como aparecer com todas as falhas, variações, erros, ruídos, no fundo, gralhas que humanizam o processo criativo e aproximam o artista do público. Muitas vezes estas tentativas são compreendidas como demasiado reveladoras: o artista que se expõe corre o risco de ser desvalorizado.
Se tivesse que pensar num tema para esta exposição, diria que o conhecimento – a procura do conhecimento – é o único elemento transversal, no sentido em que formas de conhecimento são aqui motivo, matéria e resultado, tudo ao mesmo tempo.
Não tenho receio de “dilema”, porque fazer arte é um dilema, é um dilema entre teoria e prática, é um problema de posicionamento e uma questão de forma, porque o meu problema – como artista – é: Como posso tomar uma posição? Como posso dar uma forma a essa posição? (Hirschhorn, 2014, p. 207)
Ou então dilema que, como refere Hirschhorn, é uma condição necessária de fazer arte.
O dilema de como colocar as peças umas a seguir às outras: como condicionar a interpretação final no sentido das questões éticas implícitas em cada um dos elementos apresentados. O dilema de como circular, como seguir de uma obra para outra, porque estas vão deixando subtis apontamentos que se revelam de forma mais ou menos clara perante nós.
Finalmente o arquivo seria outra escolha para tema, motivo ou resultado: o arquivo de Sérgio Leitão que nos recorda imediatamente a imagem de Malraux a olhar o seu Museu Imaginário colocado no chão, e que ao mesmo tempo nos olha a nós.
Revelo ainda uma grande curiosidade em compreender a cadência do tempo desta exposição, que com os seus ZumZums nos remete para ruídos de raspagens, mosquitos esvoaçantes, palavras ditas baixinho nos ouvidos dos entes queridos. Quanto tempo demoraremos a conhecer “ZumZum”? Quanto tempo Sérgio Leitão nos recomendaria dispensar?
Vamos ter que lhe perguntar a ele.
Joana Mendonça
Referências:
AAVV (2009), Art and Contemporary Critical Practice” eds. Gerald Raunig & Gene Ray, ed. may fly, Londres; AAVV (2017), Can’t Work like this – A Reader on Recent Boycotts and Contemporary Art, ed. by Joanna Warsza, ed. Sternberg Press, Salzburg; MALRAUX, André (2010) O Museu Imaginário (original edition from 1965, France), ed. 70 – Arte & Comunicação; RANCIÈRE, Jacques (2010) O Mestre Ignorante – Cinco Lições Sobre a Emancipação Intelectual, ed. Pedago, Mangualde;