de Celeste Cerqueira e Pedro Ruiz
Curadoria de José Maia
No início não era o verbo, mas o acto profundo de ver. Um desejo puro de observar para além das limitações físicas, uma vontade quase fetichista de querer conhecer o outro lado, não a parte obscura mas a revelação, isto é, a luz dos lugares. Trajecto esse logo vedado ou interdito ao olhar mais inconformado pelos muros e barreiras embebidos num certo imaginário urbano e político que povoam a obra de Celeste Cerqueira (pense-se no trabalho que artista apresentou neste Espaço MIRA em 2015). É portanto um desafio e uma provocação ao espectador. Tem agora de escolher, como o viajante de Saramago, se parte ou fica. A decisão está tomada, e não é feita em linha recta, mas em ziguezague, na direcção oblíqua. Como, de resto, a condição de um emigrado ou refugiado neste mundo contemporâneo que habitamos. Passada a hostilidade da fronteira, paramos subitamente, perguntamos: para onde ir? E sabemos que essa tenda é um presente envenenado, tanto pode acolher como depois expulsar, como temos assistido nesta casa Europa. Lemos escrito: Queria dizer mas não tenho palavra, Queria bater mas não tenho porta – uma metáfora política e poética a relembrar a ausência de representação democrática e a dificuldade de criar um solo onde famílias e comunidades possam permanecer quando fogem desesperadamente de conflitos ou desastres naturais e desejam principalmente conquistar um nível de vida digno e plenamente humano. O espectador avança e lê mais uma vez, como se fosse resolver um oráculo: Queria dormir mas não tinha chão, Queria voar mas não tinha avião – com o mapa do mundo ao lado em versões temporais distintas, convocamos o percurso da diáspora portuguesa, a primeira travessia área do Atlântico Sul realizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral em 1922, as imagens dos retornados da Guerra Colonial sem um tecto nem sonhos, talvez Tordesilhas no longínquo século XV que dividia o globo entre as potências marítimas da Península Ibérica. Mas o espectador-viajante pára. Recua. Volta ao caminho porque o trabalho de Pedro Ruiz é um convite à errância, à fuga, à dispersão e à incoerência. Atravessa-se um labirinto cujas paredes são revestidas por placas informáticas (que o artista solicitou a uma empresa de alta tecnologia) cuja forma se assemelha a uma planta arquitectónica, vê-se uma cortina de espectáculo que, por estar do avesso, contempla os bastidores, o espaço privado e não o palco, o lugar da cena em público. Em construção é uma exposição que desconstrói para reconstruir e encontrar assim um sentido plural para a narrativa contínua das experiências que problematizam a nossa vida social, política, cultural e artística. Traduz-se pela relação plástica e orgânica que Pedro Ruiz mantém com os materiais, dobrando-os, vincando-os, tornando-os abstractos e oferecendo-lhes uma perspectiva tridimensional. Ou pela representação dos obstáculos geográficos que Celeste Cerqueira dispõe no espaço para pensar um mundo paradoxalmente mais próximo através da mitologia da globalização e da técnica como suprema redenção do destino histórico. O espectador sabe que ver é um ritual em construção. Isto é: na sociedade líquida todos naufragam e se salvam. No início era o verbo.
(Joaquim P. Marques Pinto, Porto 2 de julho de 2016)
PROGRAMA:
2 de julho 2016
16h | Inauguração da exposição “Em construção” de Celeste Cerqueira e Pedro Ruiz
30 de julho 2016
Finissage da exposição “Em construção” de Celeste Cerqueira e Pedro Ruiz