Imagens em devir
Devir nunca é imitar, nem fazer como, nem conformar-se com um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo a partir do qual se começa, nem um ao qual se chega ou se deva chegar. Também não há dois termos que são trocados. A pergunta ‘no que estás a tornar-te?’ é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se torna, o que se torna muda tanto quanto ele mesmo.
Gilles Deleuze
Reconhecemos nas práticas artísticas de Alice Martins e de Teresa Bessa essa ideia de devir, de transformação, de evolução não simétrica, de que nos fala Deleuze. Os trabalhos de ambas são inseparáveis das ideias de performance e, consequentemente, de implicação do corpo, um corpo em contínua mudança. Se por um lado, a artista luso-francesa, a partir das intersecções entre as artes visuais e performativas, cria essas formas híbridas, ativando os espaços a partir do corpo, o corpo necessariamente na sua relação com outro, que simultaneamente se partilha e se confronta com o outro, questionando contextos normativos, políticos, espaciais ou simbólicos, também em Teresa Bessa o corpo é uma questão central. Se é verdade que o trabalho da artista, sediada no Porto, assenta num questionamento permanente da identidade nas suas múltiplas facetas, desde logo, políticas, ao contrário da poética de Alice Martins, em que o corpo ativa o contexto em que se insere, o corpo de Teresa Bessa é primeiramente ativado pelos seus contextos. É o caso do projeto documental Morto. (2022), com inevitável correlação com a imagem de marca do município. O corpo performático é aqui o corpo que caminha, que reflete e que regista. Morto. é um ensaio fotográfico in progress, acerca dos processos de gentrificação, equacionando problemáticas como a dualidade centro-periferia ou as desigualdades socioeconómicas.
Esta é uma exposição de imagens em permanente devir.
Curadoria: José Maia
Textos: Carla Carvalho
Organização e Produção da Ci.CLO
e co-produção da Câmara Municipal do Porto.
Alice Martins
FFOMECBLOT – camuflagem
2023
Instalação e performance
O acrónimo FFOMECBLOT (Fond, Forme, Ombre, Mouvement, Éclat, Couleur, Bruit, Lumière, Odeur, Traces) é uma mnemónica usada pelos militares franceses para memorizarem os fundamentos da camuflagem, ou seja, as ações a executar para não revelaram a sua presença ao inimigo. É a esse termo que Alice Martins recorre– no caso, integrada no coletivo Passion Passion – para intitular o projeto que aqui se apresenta, que acontece precisamente nessa intersecção das artes plásticas e performativas.
Teresa Bessa
Morto.
2023
Instalação com vídeo, impressão fotográfica, desenho e gravura.
Entre janeiro de 2022 e janeiro de 2023 Teresa Bessa desenvolveu, na zona do Porto oriental, o projeto documental Morto., um ensaio poético-fotográfico, acerca dos processos de gentrificação, equacionando problemáticas como a dualidade centro-periferia ou as desigualdades socioeconómicas.
NOTAS BIOGRÁFICAS
Alice Martins
A ideia de performance é inerente ao corpus de trabalho de Alice Martins. A artista, coreógrafa e performer franco-portuguesa move-se entre esses territórios das artes visuais e performativas, explorando os cruzamentos entre o corpo e os contextos em que se insere, criando formas híbridas – objetos, instalações, performances – nas quais se materializam todos estes elementos. O corpo nas suas dimensões individuais e coletivas, nos seus múltiplos contextos, quer eles sejam normativos, ambientais, espaciais ou simbólicos. Com formação académica nas áreas da arquitetura e da dança e práticas do corpo, a artista multidisciplinar cresceu entre Paris e a pequena aldeia de Torres Vedras, Matacães – curiosamente um topónimo com ressonâncias luso-francesas ¬–, e é também este singular cadinho sociocultural que enforma as suas criações.
Em 2017, fundou Objet Global, uma plataforma de pesquisa e experimentação do corpo, do espaço e das linguagens. No ano seguinte criou a companhia-atelier Passion Passion, no âmbito da qual apresentou trabalhos na Fundação Louis Vuitton, no Palais de Tokyo, na Biennale Internationale de Design de Saint-Étienne, entre outros. O projeto Galerie Cussiard, uma galeria itinerante que se propõe transportar a arte de bicicleta expondo os dispositivos que controlam os nossos movimentos, valeu-lhe um prémio da Fondation de France. Com o seu irmão Adrien Martins constitui o duo Au carré, que atualmente se encontra a desenvolver um projeto em residência no Centre National de la Danse.
http://itisalice.com/ http://www.objetglobal.com/ @alicetavu
Teresa Bessa
Artista multidisciplinar e performer sediada no Porto, Teresa Bessa (n. 2000) recorre a meios como a pintura, o desenho, o vídeo ou a fotografia. A sua prática artística assenta, sobretudo, num questionamento contínuo da identidade, nas suas facetas existenciais, queer, feministas e sociopolíticas. O corpo e os seus contextos são, por isso, questões centrais no trabalho de Teresa Bessa. É daí que parte para a construção de narrativas ficcionais e metafóricas das quais ressoam ecos expressivos e surrealizantes.
Simultaneamente, desenvolveu o projeto Morto., um ensaio fotográfico que equaciona problemáticas como a dualidade centro-periferia e os processos de gentrificação.
Licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, em 2020 fundou, com Beatriz Vale, o coletivo artístico Super Bronca, com o propósito de desenvolver práticas performativas de raiz experimental precisamente questionando a identidade e os limites do corpo e a sua inserção no contexto sociopolítico.
shenoise.com
CURADOR
José Maia, Nasceu em Moçambique em 1970, curador, artista e professor.
Comissariou várias exposições individuais e colectivas em espaço alternativos e institucionais no Porto e Lisboa mas também em Faro, Braga, Coimbra, Viana do Castelo, Sintra, Guarda e Elvas. Organizou e coorganizou ciclos de cinema e mostras de performance. Desde 1998 tem organizado debates, conversas, conferências com criadores de diferentes áreas artísticas, curadores, artistas-comissários, críticos e historiadores. Dos vários projectos curatoriais destacam-se: “Lugares de Viagem” e “Ágora” para a Bienal da Maia de 2015 e 2021, no Fórum da Maia; “Que Horas São Que Horas” e “Sub 40 – para lá da memória conhecida” , na Galeria Municipal ou “Em tudo quanto é mundo dito ou não dito”, Cinema Batalha. Comissariou exposições individuais de Silvestre Pestana, Álvaro Lapa, Alfredo Cunha, André Sousa, Pedro Tudela, Cristina Mateus, Carla Filipe, Mauro Cerqueira, Paulo Mendes, Miguel Leal, Nuno Ramalho, José Almeida Pereira, entre muitos outros. Diretor artístico do Espaço CAMPANHÃ (2008-2009) e do Espaço MIRA (desde 2013). Integrou a equipa do Serviço Educativo do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves entre 2000 e 2020. Integrou a equipa do Serviço Educativo da Culturgest Porto. Implementou os serviços educativos do Centro de Arte da Figueira da Foz, Museu Municipal da Figueira da Foz, do projeto Terminal em Oeiras entre outros. Atualmente é docente de “Artes Contemporâneas”, “Arte, Cultura e Comunicação”, “Teoria da Fotografia” e “Tecnologias da imagem”, na Universidade Lusófona do Porto. História da Fotografia e Fotografia Contemporânea no IPCI do Porto. Foi docente de Pintura, Desenho, e Artes Visuais – Fotografia, na Escola Superior Artística do Porto.
AUTORA DO TEXTO
Carla Santos Carvalho, aka Carla Carvalho, nasceu em Lisboa e vive no Porto desde 1997.
É jornalista de cultura e iniciada nas artes da curadoria e da crítica de arte.
Fez investigação e apoio à curadoria nas exposições: Walking Art Maps (2022) e From our collection with care – conservar e partilhar a coleção da FBAUP (2022), realizadas no Pavilhão de Exposições da FBAUP.
Em 2022, tornou-se Mestre em Estudos de Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, com a dissertação: Autoficção: uma ferramenta heurística de produção e receção crítica da obra de arte. Atualmente, encontra-se a terminar a licenciatura em Ciências da Comunicação, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É investigadora colaboradora do Grupo de Arte e Estudos Críticos do Centro de Estudos Arnaldo Araújo.
Jornalista há mais de três décadas, sobretudo na SIC (1994-2020), é especialista em cultura, nomeadamente, nos campos das artes plásticas, artes performativas e literatura. Realizou reportagens com dezenas de artistas nacionais e internacionais. Portugueses como: Alberto Carneiro, Artur do Cruzeiro Seixas, Eduardo Batarda, Fernanda Fragateiro, Graça Morais, Leonor Antunes, Joana Vasconcelos, João Cutileiro, José Barrias, José de Guimarães, José Rodrigues, Júlio Pomar, Jorge Martins, Jorge Pinheiro, Julião Sarmento, Paula Rego, Pedro Cabrita Reis, entre outros; além dos arquitetos Álvaro Siza e Souto de Moura; artistas estrangeiros como: Anish Kapoor, Ann Hamilton, Cildo Meireles, Julie Mehretu, Liam Gillick, Marlene Dumas, Marwan, Mel Bochner, Monir Shahroudy Farmanfarmaian, Nairy Baghramian, Olafur Eliasson, Philippe Parreno, Tacita Dean, Wolfgang Tillmans, entre outros. Entrevistou curadores como Alexandre Melo, António Homem, Bernardo Pinto de Almeida, Connie Butler, Delfim Sardo, Hans Ulrich Obrist, Robert Lubar Messeri, Joan Punyet Miró, João Fernandes, Jochen Volz, José Maia, Marta Moreira de Almeida, Miguel von Hafe Pérez, Nuno Faria, Suzanne Cotter, Vicente Todolí, entre outros.