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“A Invenção das Nuvens” de Manuel Valente Alves

Set 16Out 28

A INVENÇÃO DAS NUVENS
De Manuel Valente Alves

A definição científica diz que as nuvens são um conjunto de moléculas de água, líquidas ou sólidas que estão na atmosfera. Essas moléculas agregam-se e desagregam-se o que as torna efémeras na forma. No século XIX, a ciência procurou explicar as nuvens que eram até então do domínio das artes e da literatura. Diferentemente de Keats, que acusava Newton de ter destruído a beleza e a poesia ao explicar cientificamente o arco-íris, Goethe fica fascinado com a classificação das nuvens proposta por Howard (1), “O homem que distinguiu a nuvem, da nuvem”. Num texto dedicado a Howard, Goethe declara: “O meu desejo de dar forma ao informe, de encontrar um princípio que possa reger a infinita mutação das formas, está igualmente patente em todos os meus esforços no âmbito científico e artístico” (2). Em 1817, elabora um ensaio em que apresenta a classificação de Howard revista e modificada com o título, “Camarupa”, – nome da divindade indiana que que tem como atributo mudar as formas das coisas visíveis, deusa que pode tecer várias formas entre as quais formar e desfazer nuvens. Na penúltima linha do poema dedicado a Howard, escreve: “A nuvem, sobe, adensa, esgarça, desce: stratus, cumulus, cirrus, nimbus”.

O desassossego das nuvens

O desassossego das nuvens inquieta porque não obedecem aos eixos disciplinados da nossa representação do mundo: o espaço e o tempo. Pensamos o mundo a partir das noções de lugar, território e fronteira que não se aplicam às nuvens porque incertas em tamanho e forma: ora se alongam, ora se comprimem acabando por desaparecer ao mudar de estado. Classificadas, podem ser nomeadas, mas o seu desassossego torna precário o conforto da categorização. O tempo das nuvens é incerto não obedecendo à agenda disciplinada dos relógios, ora passa mais rápido em tumulto, ora mais lento em divagação num eterno devir. Bernardo Soares diz que as nuvens são “ficções do intervalo e do descaminho” (3), o que nos remete para a nossa condição de mortais, finitos, transitórios, precários. Desassossegadas, as nuvens inquietam-nos e ao mesmo tempo fascinam-nos porque são irrepetíveis, intangíveis, sem residência, nem âncora.

Para lá das nuvens

Stieglitz, depois de um percurso que marcou a história da fotografia, dirige a sua câmara para as nuvens desenvolvendo um corpo de trabalho entre 1923 e 1932. As cerca de 220 fotografias, organizadas na obra “Equivalents”, apresentam nuvens sem ter o horizonte como referência. São imagens que correspondem ao desejo de o autor libertar a fotografia do nível da representação literal da realidade. Constituem as primeiras obras de fotografia que se podem considerar abstratas.

Manuel Valente Alves vai mais longe. Tal como Stieglitz, liberta o tema da interpretação literal no sentido de uma progressiva abstração. A radicalidade da sua proposta manifesta-se nos desenhos que serão a sua expressão mais depurada. No seu percurso criativo começou primeiro pelos desenhos, seguiram-se as fotografias, depois as pinturas a que se seguem de novo os desenhos que são reconfigurados e mais ligados à pintura: as nuvens aparecem enlaçadas nas geometrias.

Um percurso, um (des)caminho

A exposição começa com uma fotografia a preto e branco (2001) em que as nuvens têm uma presença discreta como se fossem tão só uma citação a enquadrar uma questão maior: uma fortaleza de pedra destaca-se no horizonte com o mar como fundo. É uma presença robusta mas que apresenta sinais de destruição, reflexo da interação conflituosa entre arquitetura e paisagem, entre a natureza e a cultura enquanto produção humana. E este conflito pode ser intuído nas pinturas e desenhos organizados em linha que desaguam no vídeo “Chão de Lava” filmado em Tenerife. Constituído por imagens fixas e em movimento, apresenta a paisagem definida pelo vulcão Teide ocupada pela presença humana como se o ser humano estivesse sempre a testar os seus limites à maneira do Fausto. Subjacente a esta exposição e a tantos outros trabalhos do autor, está uma reflexão sobre a relação complexa e crítica entre a natureza e a cultura.

Para Manuel Valente Alves as nuvens não são cenário como são para tantos pintores, não as desdobra para as analisar como fazem os cientistas nem as encara apenas como objetos estéticos. Trabalha-as criativamente e os dois livros de artista e pinturas de nuvens em mesa apresentam o seu labor como que a contar um percurso em que domina a depuração do discurso sobre as nuvens.

Inventadas, as nuvens não perdem a sua identidade: levam-nos mais longe numa reflexão maior e é bem possível que nas nuvens passemos a encontrar os desenhos de Manuel Valente Alves.

Manuela Matos Monteiro

(1) On the Modifications of the Clouds and the Principles of their Production, Suspension and Destruction, Luke Howard, 1803

(2) O Jogo das Nuvens, John Wolfgang Goethe, p.29, Assírio & Alvim, selecção, tradução, prefácio e notas de João Barrento, 2003
(3) Livro do Desassossego, Bernardo Soares

NOTA BIOGRÁFICA:

Manuel Valente Alves (Abrantes, Portugal) vive e trabalha em Lisboa. É formado em Medicina pela Universidade de Lisboa. O seu trabalho como artista visual tem-se desenvolvido em torno do conceito de paisagem, problematizando as suas relações com o corpo, a memória e a política. Utiliza uma grande variedade de técnicas e suportes (pintura, desenho, fotografia, vídeo, filme e instalação) através dos quais cria séries, exposições e outros projetos, nomeadamente para edição em livro e na web.
Desde 1983, realizou cerca de três dezenas de exposições individuais e participou em mais quarenta exposições coletivas em museus, galerias e outras instituições culturais, dentro e fora de Portugal. A sua obra visual encontra-se representada em numerosas coleções privadas, museus, bibliotecas e outras instituições culturais.
O interesse pelo pensamento e prática interdisciplinares tem-no levado a desenvolver, paralelamente à sua prática artística, trabalho de investigação e de curadoria nas áreas da história, da filosofia e da museologia, ligando arte, ciência, medicina e cultura visual. Neste âmbito, é autor, editor e co-editor de cerca de duas dezenas de livros, tem feito palestras, a convite de universidades, museus, sociedades científicas e outras instituições culturais, em Portugal e no estrangeiro, e organizado colóquios e conferências interdisciplinares. Foi comissário de mais de uma dezena de exposições institucionais, cruzando arte e ciência.

De maio a junho de 2022 teve patente no MIRA FORUM a exposição “PRIMROSE: UM OUTRO PORTO ATLAS” e de outubro a dezembro a exposição “FAUSTO, o mistério do Mundo” no âmbito do MIP | mês da imagem do Porto