Sinopse
São diferentes azulejos de um mesmo mosaico, os contos deste livro. Partilham entre si, todos, um espaço e tempo concretos: o espaço é o Porto, a cidade, e o tempo é a noite.
E já que envolvi-me com este corpo de texto aproveito-me, agora, de outra analogia: roubo-lhe da sua expressão, a Nabokov, quando falo desta “corrente subaquática” que atravessa todas as histórias.
A mergulharmos as mãos nesta corrente sentiríamos, contornando-nos os dedos correndo correndo em carreiras inversas o pulsar destes dois fluxos: à cronologia dos eventos narrados concorre uma outra: nessa avança a voz e a figura a que se chama de narrador. Claro que ele avança na única carreira em que pode avançar, ou seja, do presente prò futuro. Já os eventos que relembra descrevem-se num calmo recuo.
Enfim, apenas duas coisas quanto à “matéria-prima”:
No que respeita, por exemplo, às repetições morfossintáticas, estas são intendidas —ou seja, não são gralhas. Essas— e outras— danças de linguagem, repetições rítmicas, inscrevem-se num estilo um estilo construído ao longo de muito tempo. Construído e reconstruído – sobretudo, com os textos. De resto, a sua utilidade é apenas esta: facilitar o fluir das linhas e a sua cadência; noutras palavras, aproximar o leitor da narrativa— e nunca o contrário.A segunda coisa— e mesmo pra terminar: a Elsa, boa amiga, depois de a ler, à “matéria-prima” à “matéria-prima” ainda em manuscrito, enquadrou-a numa “literatura de testemunho”.
Gosto deste termo gosto porque, como o vejo, encerra no seu interior espaço para uma boa galeria de retratos: Raymond Carver, Bukowski, Proust, Kerouac, Hemingway, Nelson Rodrigues e… porra, pra não tornar isto numa exposição de naturezas mortas, posso acrescentar algumas figuras do nosso tempo: Pedro Juan Gutiérrez, Henrique Vila-Matas, Eduardo Halfon ou María Gainza.
Boa exposição, vos digo.
Sobre a natureza deste“testemunho”, tenho isto a dizer: a mão que escreve é a mão que edita tempo tempo e espaço sobre a página, através da deslocação das palavras e dos intervalos entre estas e da sua sucessão assim como da sucessão das linhas. E por aí fora…
Nessa projeção sobre a página é onde a literatura começa.
E é assim.
(Excerto retirado do livro)
NOTA BIOGRÁFICA
Afonso Hargreaves Curval, 29 anos, é licenciado em filosofia, com um mestrado em ensino de filosofia no ensino secundário, ambos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É professor de filosofia e psicologia no ensino secundário. Escreve há vários anos tendo tido, recentemente, um conjunto de poemas seus em exposição no museu Santa Joana, em Aveiro, por ocasião do prémio Aveiro Jovens Criadores 2022. Porto à Noite é o primeiro livro que publica.