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O Porto de Ricardo Fonseca

29 Nov, 20142 Jan, 2015

de Ricardo Fonseca

QUEM PODE RESISTIR À NOSTALGIA?
A poesia deve ser poética.
disse o poeta andando pela cidade (…)
(Lêdo Ivo em “No Rumor da Noite”)

O Porto das imagens desta exposição já não existe. Já não param engraxadores na Ribeira, nem o peixeiro das canastras apregoa pela rua e mostra o artigo às janelas das freguesas. Não há la-minutas em S. Lázaro, no Molhe, na Cordoaria ou em qualquer outro sítio, fazendo a clientela olhar o passarinho, transformando-se para a eternidade em Tarzan, artista de cinema ou cow-boy. No bairro da Capela já não há mulheres lavando ao ar livre (já nem sequer existe o bairro da Capela). Nem as fritadeiras fritam iscas ao rés do passeio. No Barredo já nenhuma vendedeira vende, em banca de caixotes, artigos de confecção e atavios das modas mais modestas, nem os velhos tiram as suas fumaças, nem as mulheres da vizinhança discutem no café da manhã do Botequim da Ribeira (que foi substituído por estabelecimento in da movida turística). Nem há cães vadios dormindo ao sol (porque, na Ribeira, provavelmente só há cães de estimação – ou nem isso). E também não há regateiras vendendo peixe e vendo passar as horas à espera de compradores, nem há catraios soletrando a tabuada e fazendo os deveres com o esforço e concentração exigidos por quem toma as coisas a sério, até na rua. Ainda na Ribeira, universo magnífico onde tudo acontecia, tudo se vendia e todas as benevolências eram possíveis, já não há crianças dormindo tranquilas dentro de um cesto, abrigado por um guarda-sol, nem há meninas bebendo água no chafariz das eras da industrialização (porque, na Ribeira, quase não há meninas, e ainda menos brincando na rua, à rédea solta e à confiança). Já não se lava a roupa da casa nas Escadas das Padeiras e a elas já não chega, pela manhã, o valboeiro carregado de recovagem, encomendas ou novidades frescas para vender no mercado.
E já não existe o Porto da gente do campo (ou vestida como tal) molhando os pés na areia da praia, nem a viajante (ou emigrante?) da grande mala de cartão espera (na partida ou na chegada?) algo ou alguém na gare de S. Bento, agora convertida em terminal das multidões suburbanas. Não existe o Porto da estação da Alfândega (a que chamavam – vá lá saber-se porquê – Porto 2). O Porto dos comboios a vapor largando nuvens de fumo na passagem das Fontainhas, ou dos comboios obsoletos da Trindade, de linha estreita e tão à medida que até dava para meia de conversa e troca de mensagens entre o Chefe da Estação e o maquinista. Já não transitam comboios na ponte Maria Pia (onde, de resto, não transita nada nem se passa nada). A remise dos eléctricos transformou-se em Casa da Música, a miúda que come da malga da sopa tem agora, pelas minhas contas, à volta de 60 anos, e o miúdo do cão ao colo e máscara de carnaval às três pancadas deve ir nos 70. Se não morreram e andam por aí, vivem em Rio Tinto ou Canidelo.
Não ficam as barcaças no rio, esperando as cargas. E já não é possível o “Varna” encalhar outra vez no Cabedelo (dando origem às mais mirabolantes boatices sobre o castigo do respectivo capitão que, sendo búlgaro, acabou num gulag, levou uma injecção letal ou fora fuzilado). O Cabedelo foi domesticado, a barra do Douro é um prémio de engenharia com projecto de arquitecto e não há hipótese de algum barco se enganar na entrada. E, com o Douro amordaçado e convertido em lagos, pelas barragens, já não há cheias assustadoras inundando a Ribeira, a Rua Direita ou Miragaia. E, no primeiro de Maio, celebrando a liberdade, já não há multidões eufóricas atravessando a ponte de cima (que, tal como nas noites de S. João, deve ter tremido quais varas verdes). E muitas mais coisas que mudaram ou já não existem.
Mas perduram agora nas imagens desta exposição. Nas imagens da cidade densa, sólida, compacta, natural – talvez pobre, talvez humilde, talvez provinciana, porque elementar. Da cidade cheia de sorrisos e de gente sem artifícios, directa, unívoca. Da cidade surpreendente, inesperada, cheia de carácter – talvez especada num passado que teria de mudar, talvez sincera na roupa a secar e nas pessoas espantadas nas varandas. Da cidade porventura demasiado terra-a-terra, presa dos hábitos que existiam porque sim (ou aprisionada na teia das suas contradições e dos seus contrastes entre um passado que tardava em despedir-se e um final do século XX em que tudo começava a mudar). Da cidade, burguesa por essência e liberal por natureza, e ainda popular, operária, apegada ao trabalho na luta quotidiana pela sobrevivência. Da cidade canseirosa, dos bairros e das ilhas, das azáfamas e dos “barulhos” (assim se chamavam as zaragatas verbais, também conhecidas como “coças de língua”). Da cidade em que, tal como nas fotografias a preto-e-branco, a linha invisível que divide o bem e o mal estava claramente definida e todos a conheciam. Da cidade da poesia tranquila e da dignidade implícita.
Desta cidade cheia de ternura e de simplicidade, de sobrevivências solidárias, agires espontâneos, ofícios ancestrais, desta cidade emotiva e, aos nossos olhos cansados de realidades virtuais e paraísos artificiais, real, próxima, ao alcance das mãos na sua essencialidade fundamental, desta cidade imponderável, poética e quase sublime na sua humanidade ao nível do «rés-do chão», assim fotografada por Ricardo Fonseca, o que resta? Ou, colocando a questão de outra maneira: o que resta dela preenchendo a nossa apetência da fidelidade a um território de referências?
Desde logo os cenários, esse peso físico. As envolvências. Os locais onde as histórias sucediam: a boca da barra (e os crepúsculos), o rio (e as névoas aguarelando o ambiente), os Cidrais (de baixo e de cima), as Fontainhas (onde a antiga cascata sanjoaneira resiste às «admiráveis cintilações de vulgaridade» (Óscar Wilde) de fachada cosmopolita), as pontes, os arcos de Miragaia. Restam os sítios, os lugares useiros e vezeiros conhecidos de cor (ou seja, do coração), e a paisagem como pano de fundo desta cidade agora irreal e tornada impossível na reconstituição da sua temporalidade (já que, como diria Hartley, «o passado é um país estrangeiro, nele as coisas sucediam de maneira diferente»). E, para os sobreviventes de um mundo em extinção, que ainda convivem com os instantes «verdadeiramente significativos» agora fixados para a posteridade, para eles sempre existe esse recurso inesgotável e surpreendente chamado memória. Enquanto isso, os neófitos nascidos num mundo admirável, dito novo e repleto de paradigmas, que não conheceram a realidade plasmada nesta exposição, esses têm à mão o instrumento de apagamento da História (amplamente utilizado nos dias que correm) chamado esquecimento.
Dos anos de angústias e renúncias aqui retratados, da cidade fotografada entre a placidez das horas, o recato das intimidades e a veracidade do quotidiano da gente comum, desprende-se (citando Borges), «a certeza de que o tempo se esquece dos ontens». Embora. Da cidade que se oferece ao nosso olhar – sem tempo e fora do tempo -, desta cidade, destas imagens, resta-nos ainda um último recurso que vai sobrando para manter desperta certa doçura de viver. Um recurso chamado nostalgia (palavra banida do léxico pós-moderno e para aqui chamada por também significar «Grande desejo de rever qualquer objecto que nos agradou»). Por mim, confesso, ao ver as fotografias desta exposição e respondendo à interrogação do título, não poder resistir-lhe (digo, à nostalgia). E, recorrendo a ela (citando Italo Calvino), «oiço as razões invisíveis de que viviam as cidades, e pelas quais talvez, depois da morte, reviverão».
(Hélder Pacheco, Porto, 29 Novembro de 2014)


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